Mérian H. Kielbovicz.
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Estelionato sentimental é um termo que passou a ser difundido para caracterizar situações em que se constata o uso de vantagem indevida em relações amorosas. Assim, nestes casos, uma das partes busca obter proveitos econômico-financeiros a partir da manipulação de sentimentos e da confiança da vítima.
Cabe mencionar que não há previsão legal expressa a respeito do tema no sistema jurídico pátrio, tratando-se apenas sobre o estelionato simples. Na legislação brasileira, induzir alguém em erro, mediante qualquer artifício, com a finalidade de obter vantagens indevidas é crime disposto no artigo 171 do Código Penal, que tipifica o estelionato.
O termo “estelionato sentimental” passou a ser fundamento em decisões judiciais[1] no Brasil à partir de 2015, e vem sendo adotado em outros processos, como em uma recente sentença[2] que condenou o réu a indenizar a ex-namorada, considerando que houve a comprovação do aproveitamento dos sentimentos da vítima, envolvendo-a com declarações, e da confiança amorosa típica de um casal, além de promessas, como a de um futuro casamento. Com base nos fundamentos legais e meios probatórios, evidenciou-se que o réu induziu e manteve em erro a vítima, com o intuito de obter vantagens, praticando assim estelionato afetivo.
Após o lançamento do documentário “O golpista do Tinder” na plataforma Netflix, foi possível visualizar a prática em um caso real que tomou conhecimento mundial. Na obra, que é baseada em fatos reais, o tema central trata da história de um homem que utilizou de fatos inverídicos para atrair inúmeras mulheres para sua rede emocional, com o único objetivo de enganar por meio de diversos esquemas orquestrados, que importaram na subtração de mais de US$ 10 milhões pertencentes a mulheres de diversos países.
A fraude tinha ponto de partida o aplicativo de relacionamentos “Tinder”, em que o criminoso israelense Shimon Hayut, que operava sob o pseudônimo Simon Leviev, ostentava uma verdadeira vida de luxo e viagens caras, com a finalidade de atrair o maior número de mulheres possíveis. Após conquistar a confiança das mulheres, passava a montar cenários ludibriosos, prometendo sempre, uma vida de amor sincero.
O golpe, que foi descoberto e divulgado por antigas namoradas e uma amiga, era baseado em um esquema de pirâmide, amparando-se em grandes quantias de dinheiro desviadas das vítimas, para manter uma vida de luxo, passando de mulher em mulher, em diversos locais no mundo.
Frente a este cenário montado e atuado de um estelionatário é que se percebe as artimanhas utilizadas para o que se chama de “estelionato sentimental”. Neste crime, o agressor visa encontrar vítimas para manter uma relação fictícia, manuseando sentimentos de mulheres apaixonadas e, como em um caso retratado, apenas de amizade.
Da mesma forma que ocorreu no documentário, existem inúmeros outros casos em que há promessa de amor e uma vida de luxo, utilizando-se do afeto de forma a se obter proveito.
Conclui-se que na esfera criminal ainda se mostra difícil apontar o crime pela dificuldade na efetivação das provas para a condenação, restando, atualmente, amparo destas demandas na seara cível, com a possibilidade da condenação em danos morais e materiais daquele que obtém vantagem financeira e patrimonial em razão de um pretenso afeto existente entre as partes.
[1] Processo n. 0012574-32.2013.8.07.0001. [2] Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2022/janeiro/turma-mantem-indenizacao-a-vitima-de-estelionato-sentimental>. Acesso em: 16 março 2022.
As cicatrizes do machismo estrutural na condução dos procedimentos judiciais: uma busca incessante à dignidade da mulher
Mérian H. Kielbovicz.
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Sabe-se que o sistema patriarcal ainda traça lesões em desfavor das mulheres, que vivem em uma luta constante de coragem para assegurar direitos básicos, mas que são negligenciados pela sociedade, mais precisamente, pelos homens. Essa realidade também é vivida dentro do Poder Judiciário, que deveria ser um abrigo às vítimas, e por vezes, torna-se o próprio ambiente de agressão.
Neste passo, não é incomum que, em diversos casos, a defesa dos réus que buscam se eximir de acusações por crimes cometidos em face das mulheres, use críticas diretas a sua reputação, em uma tentativa de honrar o homem para justificar a conduta criminosa. Destaca-se, que já há muito tempo os estereótipos de gênero são utilizados com a finalidade de atribuir à própria vítima das denúncias uma parcela de culpa em crimes de violência contra a mulher.
Dito isto, observa-se que o machismo está presente também nas estruturas do judiciário brasileiro, considerando a falta de protetividade às vítimas que se encorajam para denunciar um crime sofrido e acabam por se deparar com a absolvição de homens que gozam de posições privilegiadas na sociedade. Isso decorre, principalmente, pela imagem de subjugação da mulher pela herança patriarcal, visto que o patriarcalismo se encontra presente, ainda que inconscientemente, nas decisões proferidas tanto por homens quanto por mulheres, sendo o reflexo do contexto cultural que a coletividade está inserida.
Ante aos efeitos advindos dessa realidade nos procedimentos judiciais, aonde a mulher é vista como criadora de cenários imaginados e acusadas de realizar ou incentivar os crimes cometidos contra si própria, criou-se a Lei n. 14.245/21, conhecida como “Lei Mariana Ferrer”, que tem como premissa proteger as vítimas de crimes sexuais de atos contra a sua integridade moral e psicológica durante o processo judicial.
Registre-se, que o PL n. 5.096/20 foi aprovado pelo Congresso Nacional e promove alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal. O projeto foi inspirado no caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, que denunciou ter sido dopada e estuprada pelo empresário do ramo de futebol André de Camargo Aranha, durante uma festa ocorrida no ano de 2018 em Santa Catarina. Pontua-se que Mariana foi atacada de forma cruel durante o julgamento pelo advogado de defesa do acusado, o qual fez várias menções à vida pessoal da vítima, inclusive se valendo de fotografias íntimas, apontadas como sendo falsas pela acusação. Ao final, diante de mais um ataque à vítima, houve a absolvição do acusado sob o argumento de falta de provas.
Segundo a lei já sancionada, durante as fases de instrução e julgamento do processo, fica vedada a manifestação sobre fatos relativos à pessoa denunciante que não constem dos autos e o uso de linguagem, informações ou material ofensivos à dignidade da vítima ou de testemunhas. A lei também eleva a pena para o crime de coação no curso do processo, sendo essa definida como o uso de violência ou grave ameaça contra os envolvidos em processo judicial para favorecer interesse próprio ou alheio, e recebe punição de um a quatro anos de reclusão, além de multa.
Assinala-se, ainda, a orientação do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar (Fonavid), ao ser disciplinado que magistrados e magistradas podem, no curso de um julgamento, intervir quando considerarem haver excesso de perguntas, linguagem violenta ou argumentos ofensivos à dignidade da mulher. A recomendação aprovada na última edição do Fonavid, realizada em dezembro de 2021, em Teresina/PI, reforça a aplicação de leis nacionais e internacionais de respeito à intimidade, à honra e à imagem da pessoa ofendida, entre elas, a Lei 14.245/2021 (Lei Mariana Ferrer).
Neste rumo, foi disposta a orientação do Fórum para proteger as vítimas de violência doméstica, com o objetivo de aplicar os fundamentos da modalidade do depoimento especial. Nota-se, portanto, que mesmo com inúmeras cicatrizes provenientes do sistema patriarcal, enraizado de machismo com o intuito de prevalecer o homem sobre a mulher, existem ativistas que resistem a esta dura realidade, em busca de segurança e dignidade dentro e fora do judiciário, sendo essa luta de todas nós.
Mérian H. Kielbovicz.
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A sociedade da informação trouxe, além de diversos outros meios tecnológicos, o desenvolvimento de aplicativos com a finalidade de fornecer serviços através das plataformas para seus usuários.
A partir disso, passou-se a indagar sobre a relação de trabalho entre as empresas e os prestadores de serviços, sendo uma problemática contemporânea do Judiciário, incluindo o brasileiro. Dito isto, cabe destacar de forma breve o que configura o vínculo empregatício: é preciso ter um empregador (pessoa jurídica ou física) e um empregado (pessoa física) que possua relação de subordinação, não eventualidade, e que receba contraprestação pelo trabalho realizado.
E, no que se refere ao cadastro de prestação de serviço, normalmente, o motorista é quem escolhe se vincular às plataformas como a Uber, Ifood, dentre outros aplicativos, devendo se adequar aos requisitos exigidos para iniciar a prestação do serviço. Entretanto, na grande parte dos casos, esses contratos dispõem expressamente sobre a relação estabelecida entre as partes, apontando-se ser de empreendedorismo independente, isto é, de total autonomia, o que não configuraria uma relação de emprego.
Contudo, mesmo se tratando de uma temática recente, os tribunais trabalhistas brasileiros já se dividem em relação a este assunto, uma vez que parte entende que há os requisitos necessários para caracterizar a relação empregatícia, pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação, enquanto outros acreditam que não estariam preenchidos os elementos necessários, afastando de plano o vínculo empregatício.
Para uma melhor compreensão a respeito do problema em análise, faz-se necessário analisar o entendimento da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, que condenou a Uber a pagar R$ 676 mil, por danos morais e materiais, à mãe de um motorista do aplicativo assassinado durante o trabalho. Assim, junto ao acórdão sob n. 0000078-31.2020.5.07.0015, decidiu-se em favor sucessão do motorista, que exercia funções de trabalho de forma exclusiva para o aplicativo, que foi torturado e morto com 19 tiros enquanto prestava serviço autônomo à empresa. Neste passo, nas alegações da genitora, autora da reclamação trabalhista, o motorista dedicava todos os valores adquiridos por meio de seu trabalho na Uber ao sustento próprio e de sua genitora.
No entendimento do relator, configurou-se a relação de trabalho exercida pela vítima, pois a Uber realiza parceria com uma empresa seguradora, com o objetivo de oferecer aos usuários do sistema e aos motoristas parceiros um seguro com cobertura de acidentes. Logo, existe uma evidente parcela de responsabilidade pelos acidentes sofridos pelos motoristas cadastrados na plataforma da empresa ré, de modo que, verifica-se a responsabilidade da empresa pelo evento objeto da ação.
Na mesma linha de entendimento, a 6ª Vara do Trabalho de Porto Velho reconheceu o vínculo de emprego entre um motoboy e uma empresa de entregas, parceira da plataforma iFood, por constatar não eventualidade, subordinação, onerosidade, pessoalidade e alteridade. A decisão foi apresentada no processo sob n.0001771-48.2021.5.14.0006, tendo como alegação do motoboy que teria começado a prestar seus serviços em 2019, mas sua carteira de trabalho só foi anotada em 2021, apontando ainda, que cumpria jornada em dois turnos, com horário definido pela empresa, sem autonomia para organizar suas funções e que o iFood teria sido beneficiário dos serviços prestados durante todo o período, assim caracterizando sua responsabilidade subsidiária, ante a ausência de fiscalização adequada do contrato de trabalho.
Portanto, com base nas decisões acima descritas, verifica-se que os argumentos de trabalho autônomo não se sustentam, uma vez que parte das plataformas digitais a realização de capacitação do entregador e/ou motoristas a independência laboral, bem como estas são beneficiadas pelo trabalho realizados pelos prestadores. Assim, não é possível romper com a estrutura dogmática[1] do Direito Do Trabalho, que tem como consequência, os conceitos clássicos dos elementos exigidos para reconhecimento do vínculo empregatício, ensejando, desta forma, as normas trabalhistas aos prestadores de serviço as plataformas.